domingo, 7 de novembro de 2010

LIBERTANDO AFETOS (texto publicado originalmente no livro "Arteterapia com idosos - ensaios e relatos", de Vanessa Coutinho - WAK Ed.)

   Benedetto Saraceno, em seu livro “Libertando identidades – da reabilitação psicossocial à cidadania possível” (Ed. Te Corá – 1999), fala da reabilitação psicossocial do usuário de serviços de saúde mental. Seu texto é inteligente e preciso, e me fez refletir sobre a situação dos sujeitos idosos.
   Um ponto importante trazido pelo autor é que não há “des-habilidades” ou “habilidades” em si mesmas. Alguém que, em determinado contexto seja considerado portador de uma “falta”, não necessariamente o seria em outro. 
   Algumas das perdas que caracterizam o envelhecimento (motoras, sensoriais, etc), por vezes acabam sendo super-valorizadas no ambiente sócio-cultural ou familiar em que a pessoa vive, o que se reflete em problemas afetivos, relacionais e até mesmo físicos. As perdas são reais, mas, se há a busca por outro ponto de vista, será possível encontrar aspectos que se mantém ou até mesmo se acentuam. O que precisa ser mantido e valorizado é a troca de recursos e afeto. O espaço das relações não pode ser estreitado.
   É preciso, para que haja verdadeiramente um espaço de relação, que todos os participantes da trama sejam reconhecidos como capazes de oferecer algo ao grupo, e não somente receber. O sujeito que é considerado incapaz de contribuir de forma relevante com o grupo se enfraquece, é marginalizado, fica à parte. Se, para esta análise, é considerado apenas o aspecto material, caracteriza-se um profundo enraizamento na visão econômica. Porém, existe o valor afetivo, que não pode ser desprezado.    
   Saraceno faz refletir sobre as duas vias que podem ser seguidas no trabalho de reabilitação (recordo que ele nos fala dos pacientes psiquiátricos, e eu trago a releitura no que tange aos sujeito de terceira idade): reabilitar pode ser melhorar os atributos danificados para que o sujeito esteja no nível dos demais, isto é, fazer com que os fracos deixem de ser fracos para se equiparar aos fortes. A segunda via sugere que se mudem as “regras do jogo” de maneira que “fortes” e “fracos” sejam acolhidos em permanentes trocas de competências diversas (inclusive afeto).
   E sobre que eixos se poderia trabalhar? O autor fala, inicialmente, da questão do morar, estabelecendo uma distinção entre “estar” e “habitar”. “Estar” traz a idéia da mínima possibilidade de se apropriar verdadeiramente do espaço, com um falta de poder de decisão e autonomia. “Habitar” exprime uma propriedade maior do espaço e o portar uma “voz” que se impõe na organização material e simbólica do ambiente. Lembro da fala de uma interna de instituição para idosos que relatava não gostar mais de assistir televisão, já que havia apenas um aparelho, sempre sintonizado na mesma emissora. Quando eram exibidos programas de culinária, ela vivenciava a intensa frustração de saber que jamais poderia cozinhar ou mesmo provar as receitas que eram ensinadas. Ali, percebi o esvaziamento subjetivo que uma instituição asilar pode provocar, e o quanto manter um padrão de saúde não é tarefa fácil. Neste contexto, considero bastante útil a vivência criativa proporcionada pela arteterapia, que favorece a emergência de imagens carregadas de subjetividade, imagens com “assinatura”, que afirmam a existência de cada autor.



   Porém, não se pode acreditar, ingenuamente, que somente os idosos asilados experimentam o aprisionamento simbólico (e/ou real). Este aprisionamento pode se dar também no empobrecimento das trocas com os familiares, gerando um isolamento cada vez maior.
   O segundo eixo estaria na “troca”, pois também vai se desabilitando aquele que perde, quantitativa ou qualitativamente, seu papel ativo na rede social (na qual se inclui, naturalmente, a família). Já presenciei enfermeiras de um abrigo ligarem para famílias de internos, solicitando que trouxessem sabonetes, pasta de dente, desodorante. Era uma forma, sugerida pela assistente social, de, sutilmente, tentar provocar uma ocasião para a visita, que há muito não acontecia. Os parentes vieram, tocaram a campainha e, ao serem atendidos, passaram a “encomenda” pelas grades. Nesse dia, foi preciso criar um “momento terapêutico” para acolher a equipe de enfermagem, que necessitava de uma escuta para sua própria frustração.
   Assim sendo, muitas vezes se impõe uma atuação do terapeuta com a família e cuidadores, atuação por vezes pedagógica, visando explicar os pormenores do momento vivido pelo idoso.
   O terceiro e último eixo fala de produção e troca de mercadorias e valores. O dinheiro é um valor. O afeto é um valor. O saber é um valor. Normalmente, o idoso não desenvolve mais uma atividade laborativa (embora, cada vez mais, haja exceções). É preciso refletir sobre o sentido do trabalho: sustento ou auto-realização? Ou ambos? Em nossa sociedade norteada pelo dinheiro, acaba-se por valorizar apenas o trabalho que remunera. Essa atividade garante um lugar social. Porém, aqueles que se encontram no momento da aposentadoria podem se permitir um outro tipo de “produção”, já desobrigada da intenção de “lucro”. Sem dúvida, criar, produzir arte, pode ser um maravilhoso caminho de auto-realização e auto-valorização. Não a produção em série, que aliena, mas a produção de imagens únicas, livres, ricas.   
   Neste pequeno ensaio busquei, mais do que oferecer soluções, semear propostas de reflexão sobre a situação da “reabilitação” social e psicológica do idoso, e o quanto a arteterapia pode ser uma ferramenta preciosa, rumo a uma vivência plena e saudável, e ao “reencantamento” de vidas e relações.









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