quinta-feira, 28 de outubro de 2010

PARA NÓS, QUE SOMOS PROFESSORES
Por Vanessa Coutinho

Não são poucos os casos de docentes que adoecem, se licenciam e até se aposentam
precocemente justo por sua ocupação profissional. Não há como negar, hoje, que esta seja uma das
profissões com maior número de casos de afastamento pelas mais diversas formas de estafa,
sintomas psicossomáticos e outras modalidades de sofrimento subjetivo.
Em minha experiência, já me deparei com situações que provocaram longos momentos de reflexão.
Reproduzirei uma a seguir:
Fui convidada a dar uma oficina de arteterapia para um grupo de professores estaduais, para que
pudéssemos, juntos, refletir a respeito de seu ofício. Uma das professoras dividiu conosco sua
história. No primeiro dia de aula para uma turma de adolescentes, ao se aproximar da sala, viu um dos
alunos tocando cavaquinho. A professora comentou: “muito bem, temos um pagodeiro”. O jovem olhou
para ela e respondeu: “pagodeiro, não. Eu sou sambista!”.A professora relatou ter visto intenso ódio e
agressividade no olhar lançado pelo aluno, e esse olhar a perturbou de tal maneira, que jamais pode
se sentir à vontade dando aula para essa turma. Percebia-se ameaçada, acuada, desanimada, e, se
possível fosse, chegaria a pedir transferência.
Relato este caso, dentre dezenas que poderia trazer para ilustrar essa reflexão, por considerá-lo
emblemático. Que força tão poderosa teria esse olhar, que, naturalmente, não era o olhar de nosso
jovem sambista, mas o olhar de tantos e tantos alunos que não conseguem se relacionar com seus
professores, queimam seus cabelos, furam os pneus de seus carros, dão-lhes presentes com
bombas de fabricação caseira que, ao serem abertos, deformam suas mãos? Todos esses exemplos vêm da vida real, docentes passaram por essas e
outras inúmeras situações, algumas causadoras de tal perplexidade que foram parar nos noticiários.
É sobre esse vínculo rompido, esse diálogo que vai se impossibilitando, que se constrói esse ensaio,
porém, seu ponto de interesse é o professor, sua dor, seu “sacro ofício”.
Naturalmente podemos supor que não estivesse o olhar deste aluno tão carregado de agressividade
quanto foi visto pela professora. Ou, se estivesse, talvez esse “desentendimento” pudesse ser
transposto com uma conversa franca. Porém, foi esse olhar ameaçador que a professora viu, para
ela, isso foi real.
Parece óbvio que esse confronto tão comum em nossos dias entre docentes e alunos é um
fenômeno multifatorial. Fala, ou melhor, grita, expondo uma série de feridas abertas que possuem sua
origem na sociedade, nas relações, na formação técnica dos professores, mas, sem dúvida, não
podemos deixar de tentar compreender os afetos inconscientes envolvidos, e é sobre esse ponto que
pretendo aprofundar a discussão.






 Será fato que vivemos uma crise de valores? Que as instituições sobre as quais se construíam as
crenças e ideais sociais estão ruindo? Talvez. Há um tempo os mestres eram aqueles que portavam
um poder, uma vez que saber é poder. E as crianças e jovens desejavam também desfrutar desse
saber, para também participar do poder. Hoje, há diversas formas de poder que não vêm do saber
formal, aquele que é fruto da escolarização. Em certa ocasião, trabalhei com um menino de dez anos,
morador de uma comunidade carente dominada pelo tráfico de entorpecentes. Era um menino
inteligente, com bastante talento em algumas áreas específicas, como desenho e dança. A grande
preocupação da tutora era que ele não começasse a se envolver com a contravenção, que segundo
nos foi informado, já começava a se interessar por ele. A equipe na qual eu me inseria tentava,
através da valorização dos talentos do menino, trabalhar seus valores, sua auto-estima, sua auto-
imagem. Um dia, ele chegou à instituição com dinheiro, que disse ter ganhado pelo auxílio no transporte
alternativo (ilegal, é importante esclarecer) que levava os moradores até o alto do morro, pois as
linhas regulares não fazem esse percurso. Ele ia junto ao motorista da Kombi, responsável por
receber o valor das passagens. Pois bem, o dinheiro que ele trazia no bolso por “meio período de
trabalho” era mais do que nós, educadores, ganhávamos por dia. Para ele isso era um valor, e de fato
era, embora não seja o único. Alguns professores se sentiram afrontados, e anunciaram não poder
continuar atendendo a esse menino, uma vez que não haveria como convencê-lo a se manter fora
desse movimento, pois não poderíamos lhe garantir tão alto ganho em uma profissão “honesta”, já que
nem mesmo ganhávamos tanto quanto ele ganhou. De que valores falamos? Por que a única forma de
valorizar (ou não) uma escolha de vida se pauta nos ganhos materiais? No entender de vários
integrantes da equipe, ganhar bem, ganhar muito, ganhar mais, era um argumento irrefutável,
impossível de ser transposto. Um muro. Mais um dos muros que, sem perceber, construímos entre
nossos alunos e nós. Talvez essa fosse uma crença deles. Seria uma crença do menino? Alguns não
se preocuparam em entender se, ao trazer aquelas notas, ele não estaria pedindo ajuda, ou apenas
dividindo conosco um pedaço de sua vida. Viram apenas uma afronta. E, ao se perceberem
afrontados, cortaram o vínculo, pularam do barco.
É muito comum ouvirmos que professores são mal remunerados, professores ganham mal, muito
mal. Isso já foi tão falado e repetido que se transformou em um conceito que se propaga, e as
pessoas repetem e repetem sem nem mesmo procurar saber se é ou não verdade. E, afinal, o que é
ganhar mal? Volto a perguntar: de que valores falamos? Parece que não é da cifra. Claro é que os
profissionais de educação merecem uma remuneração mais justa, mas talvez sejam as condições de
trabalho que precisem ser revistas, e isso é muito mais do que o valor de seus salários. Mas isso é
uma discussão para mais adiante.
Por outro lado, o que muito se percebe é que o ofício de professor transformou-se, pouco a pouco,
em uma mera transmissão de conteúdo. A opinião, a autoria de pensamento, como diria Alicia
Fernández, que tanta falta faz ao estudante, também faz falta ao docente. Em sua maioria, as aulas
são programadas em série, sem que haja a preocupação com o perfil do grupo, da escola, dos alunos.
E o professor, que precisa, para sobreviver financeiramente, de um tempo de dedicação em geral
acima do que seria saudável para ele, se conforma (se prende numa forma) em transmitir, sem que
haja uma discussão, uma reflexão, um debate. Ele se anestesia, já não lembra se concorda ou não
com os conceitos que repete. Tal o operário da fábrica chapliniana, aperta parafusos... Imobilidade é uma palavra
carregada de sentidos. Quem está imóvel está improdutivo. E o mestre deveria ser aquele que,
através da sua produção de pensamentos e reflexões, e o estímulo de debates, demonstra ao
discípulo que pensar e criar são atos prazerosos. Ler o que está nos livros é uma atividade solitária.
Mas debater implica dar voz ao aluno. E, neste momento, percebe-se claramente que um fio está
cortado. O que pode esse aluno me dizer? E, se eu lhe der voz, será que conseguirei manter minha
autoridade? Melhor não arriscar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário