domingo, 31 de outubro de 2010

ARTETERAPIA E ENVELHECIMENTO
(Texto publicado originalmente no livro "Arteterapia com idosos - ensaios e relatos", de Vanessa Coutinho - WAK Ed.)

Algumas histórias entram em nossas vidas de uma forma singular. Anos mais tarde, podemos não nos lembrar de quem contou, quando contou, ou em quais circunstâncias. Mas lembramos, sempre, daquilo que aprendemos com elas. Eu tenho algumas dessas histórias especiais guardadas na memória e, eventualmente, as uso em alguma aula. Gosto que meus alunos possam ouvir exemplos daquilo que estudamos vindos de minha experiência com pessoas reais. Eles me ouvem e podem reconhecer uma vida, e não um relatório, um laudo ou uma avaliação. Por isso, sempre recomendo àqueles que queiram lecionar para alunos de terceiro grau que, em se tratando de ciências humanas, não se dediquem somente à sala de aula, ou a projetos de pesquisa. Não se tornem teóricos de gabinete. Essa prática nos faz perder a vitalidade do discurso. Mas esse é um outro tema... Voltemos à minha história, que é a história de um homem que cultivava bonsais. Para quem não sabe, bonsais são mini árvores, que, justamente por serem pequenas e frágeis, requerem um ritual de cuidados muito rigoroso, além de estudo, dedicação e paciência. Pois bem, havia um homem que cultivava bonsais, e esse era um dos grandes prazeres de sua vida. Tinha vários deles, de formatos, cores e aromas diferentes. De vez em quando, juntava suas ferramentas de jardinagem e fazia uma discreta poda em algum. Passados alguns dias, podia fazer o mesmo com outro. E comentava: “agora, daqui a uns quatro anos, vai ser preciso outra poda... depois, mais uns três anos e será a hora de trocar a bandeja...”. O maravilhoso dessa história é que esse homem tinha bem mais de oitenta anos. E, mesmo assim, estava ligado à vida, fazendo planos para o futuro, criando, experimentando.
   Por vezes, nossas mentes são inundadas de crenças limitantes. Acreditamos que não podemos fazer determinadas coisas, é praticamente um processo de auto-hipnose. Podemos pensar que não podemos fazer certas coisas por sermos mulheres, ou homens, ou gordos, ou baixos, ou pobres, ou casados, ou velhos...




   A história dos bonsais me faz lembrar do processo arteterapêutico, uma vez que, em ambos, mais importante do que o produto é o processo. Quando recebemos alguém no consultório, deixamos claro que não importa o quanto se considere (ou não) “talentoso”, na concepção usual do termo. O que buscaremos é uma possibilidade plena de expressão através das imagens, e também a compreensão dos símbolos contidos nas mesmas. Além disso, será observada a relação do sujeito com os materiais: o que mais lhe atrai, o que lhe repulsa, aquele com o qual tem maior intimidade, aquele que o deixa desconfortável, como flui seu processo criativo... Somos acompanhantes atentos de todo o processo, do início ao fim. Atentos, sobretudo, à linguagem não-verbal, o que seu corpo, seu tônus, sua expressão facial, nos transmitem sem palavras.
   Não duvido que o homem que citei no início do texto chegue a concluir seus planos com relação às suas plantinhas. Então, ele fará novos planos. É óbvio que, em algum momento, elas precisarão ser passadas a outro bonsaísta, mas isso é o que menos importa. Porque, enquanto estiver vivo, esse homem estará comprometido com a vida. A voz popular, com sua sabedoria simples e direta, nos alerta o tempo inteiro, em falas como “só não há solução para a morte”, “a morte é certa”, e outros ditos de semelhante teor. Mas, e a vida? A vida também é certa, estamos aqui para vivê-la. Jung disse que não se  deve tentar ser perfeito, e sim ser completo, tivesse isso qualquer significado. Saber o que é ser completo para cada um de nós, e realizar essa completude, é a missão. Ter algum temor da morte é natural e até instintivo. Mas deixar de vivenciar experiências e possibilidades por causa da suposta proximidade da morte é uma grande injustiça com a vida.
   Existe um aspecto simbólico dos bonsais que acho interessante: quanto mais velhos, mais valor eles têm. No oriente, os idosos também têm um lugar social ligado à sabedoria e à transmissão de conhecimento, mas nós, ocidentais, há muito deixamos de enxergar esse aspecto. Culturalmente, envelhecer parece um castigo, quando é apenas mais uma fase do ciclo vital. A corrida insana rumo às cirurgias plásticas que se tornou febre em nosso país (e no mundo) é um sintoma de adoecimento e alienação. Perdemos o contato com nossa essência, nos empenhamos em parecer o que não somos. Algumas pessoas (quem não conhece alguém que faça isso?) mentem a idade ou chegam a adulterar carteiras de identidade para provar aos outros que têm uma idade que sabem não ter. A quem querem enganar: aos outros, a si mesmos ou ao tempo?
   Espero que nosso amigo bonsaísta ainda cultive bonsais. São pequenos milagres como esses, que nos alimentam de novos saberes e se transformam em histórias que podemos passar adiante, que acontecem todos os dias e nós, tão anestesiados, acabamos por não ver...

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