segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A FERIDA DE QUÍRON

Por Vanessa Coutinho


          Ana Clara (nome fictício) procurou-me a primeira vez, e tinha muito a dizer.  Como quase todos os que procuram o processo terapêutico, falou, falou, falou, e eu percebia que algo ainda havia por falar. Marcamos o segundo encontro e ela não compareceu. Entrei em contato e soube, por sua mãe, que ela havia se submetido a uma cirurgia para extirpar um tumor. Isso não havia sido dito, mas, de alguma forma, estava posto, desde o primeiro contato, como o segredo não revelado.
          Mantive-me aguardando e, durante mais ou menos dois anos, Ana Clara de vez em quando me ligava. Marcava uma consulta e não ia. Ou chegava tão cedo que nem eu mesma ainda havia chegado, então acabava indo embora. Ou tão atrasada que inviabilizava o atendimento. Às vezes deixava bilhetes por baixo da porta. E sumia por meses. Um dia ligava novamente. Marcava outra consulta, consulta que ela sabia precisar, mas não sabia se suportaria.
          Em uma dessas vezes senti raiva. Marquei um horário em que normalmente, não estaria no consultório. Ao chegar lá, descobri pelo porteiro do prédio que  “uma senhora que havia vindo me procurar não quisera esperar e fora embora”. Jurei nunca mais marcar nenhum horário para Ana Clara. Vivi toda raiva e frustração. Quinze dias depois, ela ligou. E eu marquei a sessão. Era um horário difícil, e eu acreditei que talvez não conseguisse chegar. Um colega chegou a comentar que, se não pudesse ir, não fosse, desmarcasse. Mas eu não faria isso. Mesmo que ela não estivesse lá, eu estaria, eu precisava estar. Quando estava a caminho, recebi um telefonema. Reconheci o número, e imaginei que Ana Clara me diria que não poderia comparecer. Surpresa, a ouvi do outro lado avisando que também estava a caminho. Quando cheguei, ela já estava a minha espera. Ao sair do consultório sabia que não havíamos começado ali.  Esses dois anos de (des)encontros que ambas fomos capazes de suportar, construir e ressignificar, foram fundamentais, e fazem parte do processo terapêutico que construímos.
          É um pouco sobre isso que fala este texto: da ferida de Quíron, que me fez capaz de, a partir da minha dor, entender a dor do outro, e me capacitou a, pelo menos, desejar ser terapeuta.


                                                         


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