quinta-feira, 7 de março de 2013

Ato Falho

Por Vanessa Coutinho

    Dia desses estava eu no exercício de meu ofício de psicoterapeuta, como faço religiosamente, de terça à sexta, já há muitos anos. À minha frente um homem maduro, bem alto e forte, falava de seu pai, já falecido. Ele dizia que seu pai, embora muito agressivo, jamais batera nele ou em seu irmão. Apesar disso, era um homem de muitas namoradas, as quais levava para apresentar aos filhos, que, solidários à mãe, costumavam não aprovar, naturalmente. Mas o pai, alheio a isso tudo, continuava não só namorando, como fazendo dos filhos seus cúmplices involuntários.
   Meu cliente ia contando suas histórias e, em determinado momento, para mostrar o quanto o pai era um homem violento, disse que, uma vez estavam os dois, ele e o irmão, um com cinco e o outro com seis anos, o pai e a namorada da vez sentados em um bar de beira de estrada, pois as crianças haviam pedido para ir ao banheiro, e também estavam com fome. De repente, surge uma outra moça, bastante jovem e bonita, ou pelo menos assim ela é lembrada por ele, e isso provoca um acesso de ira na namorada do pai. Meu cliente não sabe dizer se a outra jovem de fato havia tido algum comportamento inadequado, ou se o pai havia tecido algum comentário, ou se tudo não passara de ciúmes infundados da mulher. O fato é que, em sinal de protesto, ela levantou da cadeira, colocou a bolsa no ombro e, pisando firme, anunciou que iria embora. O pai advertiu que seria impossível, pois estavam em um lugar onde ela não conseguiria condução, mas foi em vão. Subitamente, ele se levanta, vai atrás dela e a agarra pelos cabelos, puxando-a brutalmente de volta para a cadeira. A mulher grita, pede socorro, e leva um tapa, que faz a boca sangrar. No bar, todos em silêncio presenciavam a cena sem sequer um protesto.
   Reltando o fato, relembrando o medo enorme que sentiu, a boca seca, as lágrimas vindo aos olhos, as mãos buscando as mãos do irmão, ambas geladas e suando. O homem fala:
   - Depois de me bater... quer dizer, depois de bater nela... - e se cala.
   Naquele momento, sem que fosse preciso falar, ele, já acostumado aos atos falhos do inconsciente, respira fundo, e sorri com tristeza. A criança vítima de violência não é só aquela que a sofre na própria carne. É também aquela que assiste.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário