quinta-feira, 26 de julho de 2012

Sobre o parto domiciliar

Vanessa Coutinho

   Tenho duas filhas. Ambas nasceram em maternidades. Nunca pensei em ter um parto domiciliar, mas, sinceramente, não vejo nenhum absurdo nisso. Da mesma forma que eu, como gestante, optei por ir ao hospital, sou favorável àquelas que optem por ter seus filhos em casa.
   No Rio de Janeiro, os médicos estão proibidos de atuar em partos domiciliares, a não ser em casos emergenciais. Estas medidas restringem principalmente o trabalho de doulas (profissionais que acompanham o parto, dando apoio à mulher), parteiras e enfermeiras obstétricas, mesmo que graduadas, especializadas e até doutoras em parto domiciliar.
   Esta modalidade de parto é aceita nos quatro cantos do mundo, inclusive nos países ditos desenvolvidos. Mas no Rio de Janeiro está proibido. A mulher que quiser e tiver condições de saúde para isso, vai precisar lutar na justiça por seu direito. "Aumenta as chances de complicação e morte", dizem os interessados na proibição. E eu não posso deixar de lembrar das recentes mortes em série de bebês devido às precárias condições (inclusive de higiene) em maternidades públicas do país, muitas ocorridas no queridísimo estado do Rio de Janeiro.
   O povo deve ter direito à informação, e creio que as estatísticas, nesse caso, poderiam ser mostradas.
   Sei não... Sinto cheiro de corporativismo...
   Espero que enfermeiras obstétricas, parteiras e doulas não se intimidem. Chega de engolir em seco diante de tanta arbitrariedade.
   Espero também que estes que lutam para que mulheres e bebês não morram devido aos partos domiciliares, lutem com igual afinco contra as mortes no interior de maternidades públicas imundas e sucateadas.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

"Foi por medo de avião..."

Vanessa Coutinho

   Um grande amigo, colega de ofício, tem uma séria dificuldade quando se trata de viajar de avião. Já chegou a declinar de um convite para ir à Europa, pois era incapaz de se imaginar sobrevoando o oceano em um trajeto de cerca de dez horas.
   Por conta dessa, digamos, dificuldade, nunca aceitou tratar pacientes que sofressem de medo de voar, e costumava encaminhá-los a outros profissionais.
   Em certa ocasião, uma paciente de quem tratava já há tempo revelou algo até então não dito: tinha medo de avião, mesmo em viagens curtas, e costumava sentir-se muito mal e angustiada quando precisava voar. Meu amigo ficou incomodado, buscou supervisão, intensificou sua análise pessoal e, por fim, decidiu que continuaria o processo com a paciente que, até o momento, ia muito bem.

                                                      
 
    Tempos depois, ele me confidenciou que sua paciente havia melhorado sensivelmente no que se referia ao citado medo. "E você?" - perguntei. "Eu acabei de recusar um convite para ir à Argentina... Não dei conta...".
   Em silêncio, sorrimos um para o outro. Eu pensava nos encantos e mistérios desta profissão. Meu amigo foi capaz e competente para minimizar a dificuldade de alguém, embora não tenha conseguido vencer a sua. Lembrei da frase de Jung: "um analista não pode levar alguém além de onde foi em sua própria análise". Outros famosos psicólogos afirmaram coisas semelhantes. Mas o fato é que o medo de voar de meu amigo certamente é diferente do medo de voar de sua paciente. Não existem sintomas iguais em sua essência.
   E eu não conseguia deixar de pensar nos encantos e mistérios desta profissão...

domingo, 22 de julho de 2012

Buda

" Se a sua compaixão não inclui você mesmo, ela é incompleta".

                                                     

Carl Gustav Jung

"Conhecer a sua própria escuridão é o melhor método para lidar com a escuridão dos outros".

                                  

sábado, 21 de julho de 2012

A doença do preconceito

Vanessa Coutinho

   Estava assistindo, junto com minhas filhas, a uma reportagem de TV que contava a história de uma mulher que tinha quatro filhos, e estava grávida do quinto. A repórter afirmava que a Sra. A. criava suas crianças com enorme dificuldade. Sem perceber, falei: "ora, mas se cria quatro com dificuldade, por que engravidou do quinto?".
   Ao final da matéria, a repórter nos revela que, um mês após aquela gravação, A. entrou, prematuramente em trabalho de parto. Foi rejeitada em duas maternidades por falta de estrutura, médico, leito, ou fosse lá o absurdo que fosse. Na terceira, deu à luz sua filhinha que, por ser prematura, precisava de cuidados especiais, que a clínica não pôde oferecer. Resumindo, a criança faleceu.
   Enquanto eu, consternada, refletia sobre a situação da saúde pública em nosso país, Luísa, de seis anos, falou: "ainda bem que ela agora só vai ficar com quatro filhos..."
   Percebi que ela quis apenas fazer eco às minhas palavras, ao meu comentário que, no fundo, havia sido tristemente preconceituoso. O que me permite afirmar que alguém deva ter um ou dois ou cinco filhos? Claro que sou favorável ao planejamento familiar, mas, quem sou eu para julgar se A. viveria melhor ou pior com quatro filhos ao invés de cinco?
   Imediatamente comecei a conversar com Luísa, explicando que as coisas não eram tão simples quanto mamãe havia dito, e que era muito ruim que aquele bebê não tivesse tido a chance de sobreviver. Percebi o quanto nós, pais, temos a obrigação de nos responsabilizar por passar preceitos éticos aos pequenos. E o quanto nossos atos, por mais sutis que sejam, são sempre tijolos fundamentais na formação de seu caráter.

Quando o pouco é muito

Vanessa Coutinho

   Amanda tem dez anos. Apresenta um quadro psiquiátrico que dificulta muito a permanência prolongada no interior do consultório. Em geral eu consigo assegurá-la, e o atendimento se dá sem maiores dificuldades, embora, de vez em quando, ela manifeste seu desejo de sair.
   Na última sessão foi impossível entrar. Como meu consultório fica em uma instituição com grande área externa, vegetação, laguinho com peixes e outros atrativos, além de oferecer segurança, resolvi apostar em um atendimento do lado de fora da sala.
   Andamos muito, para todos os lados. Falamos muito pouco. Mas, onde quer que ela fosse, lá estava eu ao seu lado.
   Em determinado momento, sentamos em frente a uma parede feita de pedras, onde se movimentava uma família de pequenos lagartinhos. Amanda ficou atenta, e começou a nomear: "aquele é grande e gordo. Deve ser o pai. Aquela outra deve ser a mãe..." 
   Até que falou:
   - Meu pai não gosta de mim.
   - O que você disse?
   - Nada.
   - Você disse que acredita que seu pai não goste de você? Por quê?
   - Porque ele não tem orgulho de mim.

                                                          


   O pai de Amanda é professor, e a queixa principal da família se refere ao fato de que está ficando difícil para ela acompanhar a turma do colégio (regular), e, possivelmente, será necessária uma reavaliação de sua situação escolar.
   Tentei continuar o diálogo, mas Amanda se fechou. Não insisti. Por vezes é preciso dar valor ao "pouco que é muito" na situação terapêutica. Tive também o cuidado de não reafirmar que o pai não gostava dela, e sim dizer que ela acreditava nisso. Era uma percepção subjetiva, e como tal precisava ser ouvida, entendida e trabalhada. E o silêncio é uma forma de trabalho.
   E assim, juntas e em silêncio, voltamos a observar a família de lagartos.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Devolvendo o Presente

(extraído do livro "As 14 Pérolas Budistas" de Ilan Brenman e Ionit Zilberman, ed. Brinque-Book)

   Buda estava conversando com seus alunos embaixo de uma linda árvore quando, de repente, apareceu um jovem bêbado desafiando o mestre para uma briga. Para surpresa geral, o mestre aceitou.
   Abriu-se uma roda, Buda de um lado, o jovem do outro. Antes de partir para cima do mestre, o jovem bêbado começou a jogar terra na cara de Buda. Este não se mexeu. Então, o jovem começou a cuspir na direção do rosto de Buda, e novamente este nada fez. Restava usar as palavras: o jovem xingou Buda de coisas horrorosas, e este também nada fez.
   Por uma hora inteira tudo se repetiu: terra no rosto, cusparadas e xingamentos. O jovem, não suportando a passividade do mestre, foi embora gritando, morrendo de ódio.
   Os alunos, espantados, aproximaram-se de Buda e disseram:
   - Quanta humilhação, mestre! Ele lhe jogou terra no rosto, cuspiu, xingou, e o senhor não fez nada!
   Buda se limpou e disse com serenidade:
   - Alunos, quando alguém vai à sua casa levando um presente e vocês não aceitam, com quem fica o presente?
   - Com quem o levou - disse um dos alunos.
  - Então, ouçam e aprendam: quando alguém joga em vocês ódio, raiva e veneno e vocês não aceitam nada disso, com quem ficam esses sentimentos?
   Aquelas palavras calaram fundo na alma dos alunos.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Renato

Vanessa Coutinho

   Não são poucas as vezes em que agradeço a Deus por me ter feito trilhar o caminho que leva ao ofício de terapeuta. A oportunidade privilegiada de ouvir histórias carregadas de afeto, favorece a que, a cada dia, surja uma nova chance de, como me disse várias vezes o terapeuta freudiano Flavio Vieira, aumentar o "ângulo de visão" diante da grandeza da vida.
   Dia desses, ouvi um relato, ao mesmo tempo comovente e forte, que ficou longos períodos a me visitar e provocar.
   Um menino de doze anos estava com uma doença com grandes chances de levar à morte. Foi-lhe proposto que tentasse um procedimento cirúrgico, que o deixaria desfigurado. Sem o procedimento, a chance de sobreviver seria zero. Com o procedimento, seria mínima. O menino, diante das assistentes sociais disse que não faria a cirurgia. Se era para morrer, morreria com a aparência que tinha naquele momento. Ao serem informados da decisão da criança, os médicos pensaram em buscar na justiça o direito de operá-lo contra a sua vontade. A equipe de "não-médicos", mais acostumada ao idioma do humano do que às quetões do corpo físico, conseguiu aplacar o "furor curador", e, enfim, foi resolvido que o menino, a quem chamarei Renato, não seria submetido ao processo desfigurante, e receberia os cuidados paliativos, que o ajudariam a viver seus últimos meses com o máximo de conforto.
   Escolhi chamá-lo de Renato porque ele renasceu, é um re-nato. Do alto da sabedoria de seus doze anos, esta criança sabia que, na verdade mais crua, ele estava condenado à morte, de qualquer forma. Também fez renascer, possivelmente, nos médicos, psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros, um respeito e uma reverência à sabedoria interna que há dentro de cada um de nós, o Self. Em seu processo de individuação, que Renato teve apenas doze anos para trilhar, talvez tenha chegado mais longe do que muitos que vivem até os cem anos.
   A ele, minha admiração por sua força e coragem, de viver seu mito pessoal com dignidade e serenidade. Se trilhar o processo de individuação nos leva a um encontro com a saúde integral no fim do caminho, Renato já completou a jornada.
   E à vida, pelo imponderável e incontrolável, por sua força e beleza, mais uma vez, meus sinceros agradecimentos.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Cabeça de Criança

Vanessa Coutinho

   Minha filha Sofia tem 2 anos e 7 meses. Está na fase de "A Bela e a Fera", o que quer dizer que assiste ao DVD inúmeras vezes por dia, chegando a decorar as canções e até mesmo algumas falas.
   Em um determinado dia, me disse que ela era a Bela. Até aí, tudo bem. Mas, na cena em que Bela, ao se ver sozinha no castelo da Fera, se joga sobre uma cama soluçando, Sofia virou para mim com os olhos cheios de lágrimas:
   - Mamãe, eu chorei! Eu chorei!
   Na hora, meu impulso foi dizer: "o que é isso minha filha!? Não é você, é só um desenho na televisão..."
   Percebi que dizer isso seria falar com o adulto que Sofia ainda não tem dentro de si. Então, busquei ajuda da criança que sobrevive em mim, estendi os braços para aquela pequena criatura magoada e disse apenas:
   - Está tudo bem, meu amor. Mamãe está aqui com você... Eu vou ficar aqui e te ajudar...
   Abraçada em mim, a cabeça em meu peito, minha filha foi se tranquilizando. Dentro de seu mundo de fantasia, eu me permiti entrar e dialogar com ela em um idioma próprio.
   O que posso dizer é que esta emoção asustada diante da cena não voltou a se repetir.
   Foi de extrema importância para mim vivenciar esta experiência, pois me ajudou a entender um pouco mais como podemos ajudar as crianças pequenas que se encontram em processo terapêutico.
   Somos constantemente convidados a adentrar seu mundo imaginário e precisamos aceitar o convite, pois esta pode ser uma forma privilegiada de sanar suas feridas e evitar futuros sofrimentos.